INFERNO PRECÁRIO, por Ruy Braga

Inferno precário*

Moradores da comunidade do Pinheirinho (em São José dos Campos/SP) resistem à brutal ação de reintegração de posse promovida pela Polícia Militar
Por Ruy Braga.
No exato momento em que as crises europeia e estadunidense trazem de volta a insegurança para as relações de trabalho, o Brasil parece se esquecer de como nossa cidadania salarial é precária… Bastaram alguns modestos progressos na formalização do mercado de trabalho brasileiro somados a uma política de lenta recuperação do salário mínimo para que uma sensação de “dever cumprido” tomasse conta do governo federal. Dispensável dizer que a mídia repercute esta sensação de maneira acrítica por todo o país. Mas será que os gestores lulistas podem se dar ao luxo de dormir o sono dos justos?
De fato, a reformalização do mercado de trabalho é uma realidade no país. Mas já havia começado no final do segundo governo FHC. A razão é muito simples: devido às altas taxas de juros praticadas pelo governo, o Estado brasileiro necessita arrecadar cada vez mais impostos pra rolar sua dívida. Neste contexto, a informalização transformou-se em um problema. Ainda assim, demonstrando uma vez mais que a informalidade e a precarização são características estruturais da sociedade brasileira, mesmo após nove anos de hegemonia lulista, estamos ainda a anos-luz de distância da taxa de formalização (60% da População Economicamente Ativa, contra os atuais 50%) alcançada no final dos anos 1980, justamente quando o modelo nacional-desenvolvimentista conhecia seu colapso final. Se compararmos o tamanho de nosso mercado formal de trabalho com o de países como África do Sul (70%) e Argentina (75%), perceberemos como o “oba-oba” dos gestores lulistas não passa de uma cortina de fumaça para esconder o malogro das políticas adotadas.
E isso sem mencionar que não devemos confundir informalidade com precarização. O trabalhador pode perfeitamente estar precarizado, ainda que submetido a relações de emprego formais. Basta dar uma olhada nas taxas de rotatividade do trabalho em alguns setores econômicos paulistas que notoriamente empregam muita força de trabalho, como o comércio e o setor de serviços, por exemplo (algo entorno de 42% ao ano) ou no aumento do número de acidentes de trabalho no Brasil durante os últimos 3 anos (de 400.000 para 700.000 acidentes), para percebermos que, mesmo formalizado, o trabalho no país continua tristemente precário.
Com o salário mínimo acontece algo semelhante. Por uma lado, o DIEESE calcula que o salário mínimo necessário para o trabalhador suprir despesas básicas com alimentação, moradia, saúde, educação, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência, como determina a Constituição Federal, deveria ser de R$ 2.349,26. Este ano, o governo repassou a inflação mais a variação do PIB para o novo mínimo (R$ 622,00), tirando da conta a elevação da produtividade do trabalho no período, e diz que redistribuiu renda. Pode? Vale lembrar que o mínimo calculado pelo DIEESE diz respeito apenas à remuneração necessária à reprodução do trabalhador não-qualificação. Ou seja, o mínimo do governo federal ajuda a reproduzir a força de trabalho nacional abaixo de seu valor.
Tudo somado, a burocracia lulista pode dormir o sono dos justos? Aliás, por falar em sono, o precariado brasileiro voltou à baila esta semana como um pesadelo. A brutal e criminosa invasão do bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos, pela Polícia Militar de São Paulo indignou o país. Descumprindo determinação da justiça federal que adiava a reintegração de posse do terreno, cerca de 2.000 soldados da PM, apoiados pela guarda municipal, helicópteros, cães, centenas de viaturas…, expulsaram brutalmente mais de 3.000 moradores de suas casas – os outros 3.000 moradores já haviam deixado o bairro antes por receio do conflito. Muitos dos moradores expulsos de suas casas são empregados com carteira assinada nas empresas da região. Poderiam até aparecer na propaganda lulista. No entanto, o Brasil real logo tratou de lembrar àqueles como nossa cidadania salarial é mesquinha.
Mas que um governador filofascista, acólito de organizações sinistras (como a Opus Dei) e à frente de um judiciário particularmente reacionário (como o de São Paulo), tenha decidido brutalizar crianças e trabalhadores para beneficiar um criminoso que, entre outras coisas, quebrou a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, não causa espanto algum. No entanto, saber que o governo pilotado por uma burocracia sindical que só existe politicamente devido àquela rebelião das bases metalúrgicas do final dos 1970 não fez absolutamente nada para evitar a tragédia é que irrita. Sem falar nas manobras lulistas pra faturar politicamente com a indignação popular contra o PSDB despertada pela ação da PM.
Ao invés de ficar declarando que a desocupação do Pinheirinho foi uma “barbárie”, a única coisa realmente séria que a presidenta Dilma Rousseff poderia fazer seria usar o Ministério das Cidades para desapropriar a área e devolvê-la aos moradores do bairro. Mas seu governo não fará isto. Por quê? Porque é aliado dos mesmos interesses financeiros que seu adversário paulista. Em certa medida, o massacre do Pinheirinho resume bem a relação que o capital financeiro (representado, aqui, por Naji Nahas) trava com o precariado brasileiro. Uma relação baseada na expropriação brutal (Alckmin) mediada por uma burocracia sindical (governo Dilma) que sabe bem faturar as oportunidades políticas, mas apenas empurra com a barriga as angústias dos trabalhadores. Até quando?
***
Boitempo indica: para assistir após ler
Recomendamos que o leitor ou leitora assista ao filme de curta-metragem sobre a desocupação do Pinheirinho, realizado pelo Coletivo de Comunicadores Populares, após a leitura desta coluna de Ruy Braga.
***
Dois livros organizados por Ruy Braga e publicados pela Boitempo já estão à venda em versão eletrônica (ebook): Infoproletários: degradação real do trabalho virtual (2009, em coorganização com Ricardo Antunes) e Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira (2010, em coorganização com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek). Ambos podem ser comprados na Livraria Cultura e Gato Sabido.
***
Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

* Publicado originariamente no Blog da Boitempo

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

PREFEITURA DE JABOATÃO TERIA FEITO PAGAMENTOS POR EVENTOS CANCELADOS REFERENTES AO CARNAVAL 2017, DENUNCIA ARQUITETO

"Pernambuco, meu País"! Qual a origem do orgulho de ser pernambucano? Você sabe?

EXCLUSIVO: Membros da família Figueira, gestora do IMIP, usavam cartão de crédito de "laranja" para esconder gastos, inclusive, no exterior, apontam investigações.