Banco Central: quando autonomia significa mais desigualdade, por José Serra

Sede do Banco Central em Brasília. Foto: Rodrigo Oliveira/Caixa Econômica Federal.

José Serra*

O Parlamento e o governo sabem que um dos legados da pandemia é o aumento da desigualdade social. Famílias sem acesso a recursos financeiros perdem renda e emprego, com seus filhos fora da escola, lutando pela sobrevivência. Além disso, não temos orçamento público aprovado nem planejamento financeiro para ajudar essa parcela significativa da população brasileira. É neste cenário que o presidente da Câmara resolveu pautar projeto que institui a independência política do Banco Central, o que tende a aumentar, mais ainda, essa desigualdade.

A proposta é moralmente perversa e deve ser rejeitada, pois a independência política de um Banco Central aumenta a já enorme barreira que separa ricos e pobres. Essa é a conclusão de pesquisadores do Banco Mundial em estudo publicado este ano a respeito do impacto da independência dos bancos centrais sobre a desigualdade:“Does Central Bank Independence Increase Inequality?”. Com sólida base teórica, os estudiosos do banco demonstraram a existência de correlação entre a independência do Banco Central e a desigualdade social. Chegaram a três conclusões de fácil compreensão.

Primeiro, a independência dos Bancos Centrais limita o alcance da política fiscal, o que limita a capacidade de um Governo para distribuir recursos. Segundo, incentiva a desregulamentação irresponsável dos mercados financeiros, beneficiando os investidores em bolsa, na medida em que infla os valores dos ativos negociados no mercado. Terceiro, promove indiretamente políticas que enfraquecem o poder de negociação dos trabalhadores, com o objetivo de conter pressões inflacionárias.

A autonomia política do Banco Central é uma pauta que inundou os países industrializados na década de 1970, ajudando a fomentar, na academia, a tese da superioridade da independência dos bancos centrais. Naquele período, muitas democracias aprovaram normas para conferir autonomia a suas autoridades monetárias, com o objetivo de tornar mais efetivo o controle das taxas de juros.

Depois da crise financeira de 2008, o cenário mudou bastante. Hoje os bancos centrais têm mandato que extrapola, de longe, aquele papel clássico de cinquenta anos atrás, em que as autoridades desses tinham, como única missão, executar a política monetária via definição da taxa básica de juros da economia.

Os bancos centrais modernos estão atuando na política monetária em coordenação com a política fiscal, injetando dinheiro para aquecer a economia. O projeto em discussão na Câmara dos Deputados chega a criar um mandato a mais para o nosso BC: promover crescimento e emprego. Esse novo arranjo institucional da política monetária é incompatível com o argumento da soberania política para o esse banco.

No cenário atual, a discussão sobre projetos para garantir independência política para o BC está completamente fora de hora. O Brasil vive uma pandemia das mais graves da história, com hospitais do SUS abarrotados de pessoas infectadas pelo coronavírus. Em algumas localidades, faltam balões de oxigênio para manter pessoas respirando. E o novo presidente da Câmara resolve mostrar serviço, tentando aprovar uma das reformas menos relevantes para o enfrentamento da crise.

Claramente estamos perdendo o foco ao discutir independência do Banco Central, justamente agora. A energia e o tempo do Congresso deveriam estar voltados para a aprovação, antes de mais nada, do orçamento, e discutir como viabilizar um socorro emergencial para as famílias que estão lutando pela sobrevivência. Nada é mais importante no momento.

Neste cenário, o Congresso deveria rejeitar qualquer proposta que possa promover maior desigualdade social. A pandemia já está atuando nessa direção, e o que temos que fazer no Parlamento é combater a desigualdade, como cabe a um poder autônomo da República.

*José Serra (PSDB-SP) é senador da República. Foi ministro da Saúde durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1998-2002), ministro das Relações Exteriores durante o governo de Michel Temer (2016-2017), governador de São Paulo e prefeito de São Paulo.

PUBLICADO NO CONGRESSO EM FOCO 


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